Dan Saydel
O CAVALO DO JUCA
José Carlos (Dan) Saydel
Como não era possível para a única empresa local absorver toda a mão de obra, era comum ver o pessoal por volta de 16/17 anos, em bloco, no mais completo ócio (alguns, homens feitos). Sentados em roda no campo de futebol, fumavam, liam os famosos “catecismos” do Zéfiro e jogavam conversa fora por horas à fio. Era tanta preguiça que, apesar da água ser abundante ao redor, preferiam puxar o talo da capim, colocá-lo entre os dentes e, em seguida, puxá-lo para que o sumo “aplacasse” a sede.
Nesse pequeno universo a “revolução” embora já tivesse sacudido o país, com certeza não chegaria, mas ela chegou um dia. Dr. Costa Neto, mineiro de Baependi, engenheiro pleno, boa praça, na qualidade de inspetor geral da Usina resolveu criar uma ocupação para a moçada. Incumbiu o Sr. Félix Alquezar de escolher um lugar onde seria instalada uma grande horta que atenderia moradores locais e das imediações. O terreno escolhido foi uma várzea ao lado do rio, posteriormente aterrado. Os “voluntários”, entre eles: Biúna, Dito Caçambé, Tidão, Bimar, Bimael, Cocada, Juca Lemes, não tardaram a aparecer. Não que quisessem trabalhar, mas sim, atraídos pela promessa de que todo o dinheiro arrecadado durante o ano seria dividido entre os participantes em Dezembro.
Iniciados os trabalhos, com a firme direção de Seu Félix, aliada aos seus conhecimentos, a produção não tardou e, consequentemente as vendas. O empreendimento era de fazer inveja. Dava gosto ver os encarregados da venda diária saindo com suas cestas brancas de madeira, confeccionadas na oficina da usina, céleres e orgulhosos. Os produtos de excelente qualidade e preços imbatíveis. O “evangelizador” Alziro Zarur, com sua bela voz, mantinha um programa diário no rádio, que era finalizado com a oração de São Francisco de Assis e um pedido de ajuda para a sua Legião da Boa Vontade. Como tudo deve ter um nome, a horta passou a ser chamada de Horta da Boa Vontade (não se sabe de quem foi a sugestão). Nem tudo, porém, foi um mar de rosas, eram comuns os acidentes e as brigas, enfim...
O tempo passava com vagar, mas, finalmente, Dezembro chegou. Uma vez feita a partilha, na semana que antecedeu o Natal, a comitiva embarcou no “Porcão” que contava com o “Pete” (NE: Modo como o Dan costumava chamar o Seu Bentico) na direção e Seu Félix para conduzir e patrulhar o pessoal e seguiram para Sorocaba. Era uma alegria só! Lá chegando, a primeira parada foi na Padaria Moderna, onde se fartaram de comer doces. Só o Juca não comeu; como ele era franzino e pálido, todos pensaram tratar-se de algum problema estomacal.
O grupo despertava a atenção dos passantes mas não estavam preocupados com isso, sendo assim, lá se foram às compras. Ternos e calças de tergal, camisas “Volta ao Mundo”, spatos, epselhos de bolso, pentes de osso “Flamengo”, carteiras, revistas... O Caçambé cansado dos sapatos de sola de pneu, comprou logo um cromo alemão no “Verrone” e o Tidão, para atender suas maquinações, um canivete multiuso na casa Saturno. E o Juca? Nada!
O dinheiro foi se acabando, a hora de voltar se apresentou e todos queriam saber porquê o Juca não gastou nenhum tostão. A pressão foi tanta que timidamente teve que confessar: “Vou guardar dinheiro para comprar uma égua.” O riso foi geral. Durante a viagem de volta e nos dias que se seguiram, transformou-se em motivo de pilhérias. Afinal, quem daria crédito a alguém tão singelo cuja maior façanha, até então, era ser reserva do Luiz Curadô no 2º quadro do S.P.E.F.Clube.
O aforisma “O tempo é o senhor da verdade”, parece calhar à propósito para a ocasião. Fazendo alguns “bicos” – sim, porque a horta deixara de existir – juntou o restante e, meses depois, comprou uma égua. Como o animal sofrera maus tratos, não estava “lá essas coisas” e, sendo assim, foi escondida em um pasto atrás dos canos adutores da Usina. Alimento farto, escovação diária, torrões de açúcar e o carinho do dono acabaram transformando o animal. Agora, de pelos e olhar brilhantes, orelhas empinadas para o céu, com a crina e o rabo devidamente aparados, o grande dia chegou!
Juca, pacientemente, encilhou o animal conferindo cada detalhe. Em seguida, montou nela com suavidade e bastou um leve toque em sua anca e lá se foram, com destino ao campo de futebol. Durante o trajeto recebia o cumprimento respeitoso dos mais idosos, enquanto que as crianças, alvoraçadas, corriam atrás gritando: “Olha o cavalo do Juca!”.
No momento do encontro com os companheiros o que se viu (esse foi o único dia em que, literalmente, “vi” o silêncio) foi um silêncio total. Ninguém conseguiu abrir a boca. A figura do cavaleiro era muito nobre e a distância que o separava da cambada, imensurável. Observei que se tratava de uma fêmea, pensei perguntar seu nome, mas, faltou coragem. Chegando em casa, olhei com desdém para meu cavalo de pau e concluí que, finalmente, tínhamos nosso paladino.
Habituado a nomes estrangeiros para cavalos (Trigger, Silver) comecei a imaginar o nome da égua. Seria Princess, Queen, Pretty Doll? Certa manhã, eu entretido cortando capim para os coelhos eis que, de repente, o Juca e sua égua - para meu assombro – surgiram do nada e pararam ao meu lado. Puxei prosa, ofereci um Continental e conversamos sobre assuntos diversos. Como o nome da égua era ainda, de certa forma, um segredo, disparei: “Como é mesmo o nome da ‘baita’ ?”. Cofiando o ralo bigode e apagando a ponta do cigarro com suas Havaianas, não se fez de rogado e respondeu solene: “Cassununga!!”.
(Sorocaba, 13/08/2007 - 9h45 AM)
O COCHILO DO CAÇAMBÉ
“É preciso amar agora as pessoas, como não houvesse amanhã” (Cazuza)
Constava nos anais do conhecimento popular que, nos anos 20, em uma das idas do S.P.E.F.C. à capital paulista, a equipe principal sofreu um amargo revés. Tudo por conta de um exímio ponta-direita por nome de Luiz Ribeiro.
Terminada a partida, os dirigentes, entusiasmados com sua atuação, lhe ofereceram emprego na Usina de Itupararanga, na ocasião, município de Sorocaba, com o intento que o jogador vestisse a camisa alvinegra da equipe. A essa altura, ele, envergando um terno de linho branco, chapéu de lado e um sapato bicolor, revelava ser uma pessoa muita calma e, como bom carioca, desfilava um vocabulário carregado de gírias.
Combinados salário e função, Luiz decidiu acompanhar a delegação na viagem de volta. Subiu no pneu e saltou para a carroceria do caminhão. As tábuas adaptadas que serviam de assento para os jogadores estavam repletas, ele, de voz macia e cheia de maneirismo, carregou no sotaque e emendou um: “Dá uma beirada, aí!”.
Pela singularidade da figura, além de ganhar o emprego, de imediato, ganhou o cognome que haveria de acompanhá-lo para sempre: “Luiz Beirada”, ou melhor, “Berada”.
Nos anos 50 já contava com uma bela família: D. Dulce, a esposa; e Rosa, Ilda, Deoclécio, Noêmia, Beatriz, Maria Aparecida (Ito) e “Caçambé” (Benedito Ribeiro), os filhos. Não eram negros retintos, mas, de branco mesmo, só suas almas, as palmas das mãos e as solas dos pés.
Até os sete anos de idade não me foi dada a oportunidade de conhecer, sozinho, os arredores. Apenas caminhadas diárias no final da tarde, em companhia de meu pai. A partir dos meus quatro anos, com o intuito de deixar minha mãe livre para os afazeres domésticos, meu pai procurou achar um companheiro (sem remuneração) para o menino irrequieto que adorava desmontar despertadores. Escolha melhor, impossível, e assim fui apresentado ao meu grande amigo da primeira infância: Dito Caçambé! Formamos o que se pode chamar de uma “simbiose perfeita”. Ele, naturalmente calmo, se encantava com a casa e os brinquedos do menino; aviões de lata (Boeing, Douglas DC-4, De Havilland), brinquedos plásticos (carros, caminhões, soldados) e, particularmente, com o Televisex.
O menino, por sua vez, se encantava com o rapaz, provavelmente uns oito, sete ou seis anos mais velho, não sei ao certo... Por assim dizer, era, aos meus olhos, um gigante de ébano e uma espécie de “gênio da lâmpada” maravilhosa. Tinha uma coriza renitente e se livrava dela com o indicador em narinas alternadas, lançando os excrementos diretamente no quintal.
Das nove ao meio dia, atividades lúdicas eram uma constante em nossas vidas. Depois do almoço era praxe colocar as crianças para dormir um pouco. E eu só ia, se ele fosse. Acomodado em uma esteira, esperava eu dormir e em seguida se retirava silenciosamente...Viu muitas vezes o menino dormindo.
Houve época em que a Ilda trabalhou em casa. Eu me lembro que era uma mulher de beleza exótica, posteriormente foi trabalhar em São Paulo, vindo a falecer precocemente, vítima de um tumor cerebral.
Da Noêmia, diria que possuía uma das melhores caligrafias que vi.
O Deoclécio era tartamudo. Como sempre dava uma passadinha em casa, em função de seu porte, seu sorriso rasgado e simpatia decidi ser gago também. E fui tão bem no aprendizado, que já estava gaguejando melhor que o “Bororó” (seu apelido). Mas eu tinha uma tia-avó mística. Filomena era seu nome. Pessoa muito íntima do além que combinou uma “cirurgia espiritual”, a ser realizada na casa de minha avó Amélia, em Votorantim. Na data aprazada, eu e tia Filomena entramos em um quarto escuro. Ela, munida de uma colher de pau e eu, apavorado, com o possível encontro com os espíritos cirurgiões. Se os cirurgiões estiveram presentes, provavelmente estavam vestidos de preto, porque eu não os vi. A colher, entretanto, causou tantos desconfortos (visto que o problema era “campainha caída”) que resolvi deixar a gagueira de lado.
A partir do meu ingresso na escola primária, imposição natural da vida, de certa forma, eu e Caçambé nos afastamos um pouco. Como eu já podia sair sozinho, ia muitas vezes até sua casa. Sua mãe fazia enormes polentas em panelas de ferro e reservava para mim as casquinhas que ficavam grudadas no fundo (iguaria sem igual).
No Inverno, o abacateiro do quintal proporcionava nosso deleite, sem contar que, atraídos pelos frutos maduros, os sabiás se tornavam presas fáceis para as arapucas do Caçambé.
Aos domingos, D. Dulce, extremamente religiosa e Miguel (irmão do Mundico), nos ensinavam catecismo. Ao final, havia distribuição de balas e brincadeiras na rua. O silêncio deveria ser mantido a qualquer custo nas aulas dominicais, para isso contava com a Maria Aparecida (Ito), estrategicamente sentada na platéia, que distribuía beliscões nos mais falantes! Guardo na memória D. Dulce com sua bela voz de contralto (voz mais grave de mulher), nos ensinando: “Dai-nos a benção, Oh, mãe querida, Nossa Senhora, Aparecida...”.
Acompanhei com interesse quando Caçambé foi guindado à condição de titular do S.P.E.F.C. Diferente do pai, ele foi aproveitado, pelo Orlando Camargo, como lateral-esquerdo. Realizou em excelentes apresentações e tornou-se uma das maiores promessas da equipe. Com a aposentadoria do pai, na segunda metade dos anos 60, estabeleceram residência em São Paulo, mais precisamente no bairro Cangaíba, onde aprendeu a profissão de torneiro mecânico.
Anualmente, no período de férias do trabalho, Caçambé sempre passava de 15 a 20 dias em casa, fato que era motivo de satisfação para todos nós. Para narrar um fato de no máximo cinco minutos ele levava quarenta e cinco! Eu me lembro de mim e meu pai ouvindo paciente aquelas narrativas intermináveis, como forma de premiar a atenção que durante muito tempo ele dispensou ao menino.
A vida se encarregou de nos engolir. Segundo Cartola: “O mundo é um moinho, Vai triturar teus sonhos, Tão mesquinhos, Vai reduzir as ilusões a pó.”
Então, em 1984 - “Não estou bem certo, mas, estou quase certo” (Nelson Cavaquinho) – eu concluí que nós estávamos envelhecendo. Na ocasião, ele conseguiu meu endereço e durante sua visita pude notar que seu semblante apresentava vincos acentuados e que seu vigor físico declinara sensivelmente.
Cerca de quatro anos atrás, recebi um telefonema de minha ex-esposa informando que ele estava à minha procura. Sem exitar fui buscá-lo e, no caminho de volta, às margens da rodovia, paramos num conceituado local que comercializa produtos de milho verde. O “Negão” atacou mesmo foi no caldo de cana (dois copos de 500 ml). Ora, devido seu alto teor de sacarose, o caldo de cana causa sonolência, assim, chegando em casa, ele se acomodou no sofá, folhando o jornal e eu fui em busca de nosso almoço.
Na volta, ele estava dormindo sentado no sofá. Eu me detive ali por um instante, em silêncio, observando a cena e me lembrando divertido que a situação, afinal, se invertera. Agora era que observava o sono gostoso daquele que, tantas vezes, tinha me visto adormecido. Fiquei observando e respeitei, com meu silêncio, o cochilo do Caçambé. Por onde anda ele hoje? Não sei, não sei...
[Dedico este conto ao Mário Luiz Silva (Ganso), amigo e parceiro na construção de vários cercados, hortas e galinheiros.]